terça-feira, 30 de dezembro de 2014

são zica pegando manga sobre fundo azul

Que risada gostosa que você tem. De quem não se importa com os ouvidos que escuta, que ri porque o mundo é bão e só hoje deu tempo de visitar três doentes um moço que mora lá em cima perto daquela mulher e uma que mora perto da quadra e depois a vó Lilia, você já foi lá ver a vó Lilia? Não fui não, ela chegou do hospital foi hoje né? Foi. Tem que ir. Mas o que que é isso que você ta carregando no pescoço? É uma pedra. Pedra? É uma pedrinha. Ah! Resposta simples, tão simples quanto a vida. Tão simples quanto levar um sabonete pra cada um no natal e no dia do aniversário. Quantos anos você tem? Ih não sei não tem que olhar no documento. Vou deixar uma surpresinha aqui pro Julinho viu? Tá bom. Já almoçou? Já madrinha, tem chá? Tem. Faz muito tempo que você chegou? É, eu vim no natal. Vou ficar aqui até ano que vem. Que chapéu bonito que você arrumou! Hum. Nossa Senhora que gracinha das manguinhas, mas tem que pegar rápido se não os carros passam por cima. Uma, duas, três, que tanto! Porque se os carros passarem por cima vira aquela pracata no asfalto. Prec. Prec. Tá quente, né São Zica? Demais meu filho, mas não sou São Zica não, sou tia. Então, bença! Assim a nuvem passa, o carro passa, a vida vai passando sem dar sinais. 

Duguinha.


terça-feira, 16 de dezembro de 2014

o dia que Antônio Prata me definiu

     Se o mundo tivesse algum sentido não seria possível existir o nome Douglas. Fale em voz alta. Douglas. Douglas-Douglas-Douglas. Você está percebendo? Está sentindo? Às vezes acordo e me pergunto se não era sonho, se é realmente possível existirem Douglas.

     Todos os nomes são homogêneos, trazem uma ideia de forma, cor, textura. Ari é uma pequena pedra, uma brita, é cinza. Lúcia começa larga e vai afinando, é um nome pontiagudo, como uma adaga, como uma estalactite de gelo, e é azul escuro ou vinho. Leopoldo é um nome obeso, marrom. Teria de fazer muito cooper para até se tornar um Leonardo, arisco e laranja. Leopoldo é foca. Leonardo é leão. Ana é nome casto, virgem. Ana é tão branco que talvez seja transparente. Não dá pra ficar bravo com uma Ana. É um nome sem odores. Tão diferente de Murilo, que com certeza tem chulé. Murilo é um nome cheio de musgo em volta, é úmido, é verde. Cada um desses nomes tem sua unidade, como se fosse uma estrutura interna, uma coerência. Douglas não.

     É como se Douglas fosse uma matéria mista de silicone e aço. Quente e frio, claro e escuro, mole e duro ao mesmo tempo. Dá pra imaginar? Não dá. Há anos que venho repetindo esse nome. No trânsito, no banho, em filas de cinema ou no banco, sempre que uma ideia saiu e outra não chegou, ele aparece: intrépido Douglas. Ou, às vezes, no meio de uma ideia, de um texto ele entra sem pedir licença, e meus lábios expelem, movidos por forças ocultas: Douglas.

     Dou. Doooouuuu. Dou é pronunciado aveludadamente pela boca. Dou é a pronúncia da nota dó em inglês. A nota mais grave do piano. Dou sai como uma bola de sabão. Dou expande-se. Dou é mole como um travesseiro, é macio, é escuro. Dou é o movimento de expansão do universo. Ao mesmo tempo em que Dou é isso tudo, ele é vizinho de glas. 

     Glas é rápido e pontiagudo. Glas é um copo quebrando no instante em que toca o chão e parte-se. E, vejam só, glass é vidro em inglês. Glas é cor cítrica, amarelo de marca-texto. Glas é azedo, é contração. Glas é o que pode haver mais antagônico a Dou. E, no entanto, eles vivem juntos: Douglas. 

     [...] Tenho a sensação que levarei essas indagações para o túmulo. E se chegar do outro lado e houver céu, não tenham dúvidas sobre qual será a minha primeira pergunta para Deus. Juro, não me espantarei se, após expor minhas mais profundas indagações, Deus estender a mão e disser: olá, como vai? Eu me chamo Douglas. 

rsrsrsrsrsrsrsrsr.

Douglas e Outras Histórias. Antônio Prata. Azougue Editorial, 2001.

domingo, 14 de dezembro de 2014

la edad del cielo

No somos más
Que un puñado de mar
Una broma de dios
Un capricho del sol
Del jardín del cielo
No damos pie entre tanto tic tac
Entre tanto big-ban
Solo un grano de sal en el mar del cielo

Calma todo esta en calma
Deja que el beso dure deja que el tiempo cure
Deja que el alma tenga la misma edad que la edad del cielo

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

aqualung

eu quero que o tempo passe e nos separe de uma vez por todas, só que dessa vez que seja de verdade. não existe mais o que antes existia, mas ninguém vê isso. você tenta salvar o último fiapo da corda que antes o nosso laço. deixa cair, que é mais fácil. vai cair de qualquer jeito, vamos tentar ficar menos doloroso. uma queda esperada é melhor, dá tempo de ensaiar os gemidos. eu prefiro que cada um siga seu espaço, sua trilha e que a vida trate de substituir a falta que o outro faz. eu torço para que a efemeridade leve o futuro para um lugar longe do presente, mas não separado do passado. as borboletas foram engolidas e agora habitam em outros estômagos. essa é a lei natural da vida. os equipamentos quicam no fundo mar. enferrujaram. não servem mais. aqualung. somos marinheiros, em cada porto novos amores. 

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

projeção de mercator

Será que precisa de alguém sair de um lugar inimaginável para ensinar que não importa o que os outros pensam? Sempre achei que não me importava, mas no fundo importava. Porque o que os outros pensam se mistura de uma forma tão rasteira com o que você pensa até parece que é você quem está pensando. Será que precisa de alguém para mostrar que roupa e etiqueta não é nada em nenhum lugar? Que papos sobre amores e desamores beiram a futilidade quando você não tem amor pelo cheiro do seu próprio corpo ou pela sola do seu pé? 

Na verdade eu não sei se precisa alguém sair de um lugar inimaginável para me ensinar o que eu pensava que eu sabia. Mas agradeço por ter saído de um lugar inimaginável para ir para outro. Aliás, quem garante que o mundo não é um lugar inimaginável? Agora ando descalço em museus. Como laranja e me sujo. Me sujo. E não me aguento de vontade da próxima chuva para ir correndo dançar. Afinal, a gente é feito para acabar. A gente é feito pra dizer que sim. A gente é feito para caber no mar, e isso nunca vai ter fim, mesmo o mar caindo em gotas do céu. Felicidade é mesmo só questão de ser.